21.7.07

Da Imparável Marcha das Ratazanas *

Como em tempos se referiu (apenas como a salada que acompanha o prato e fica assim asseverada a posição do autor sobre saladas), tinham sido as ratazanas os únicos seres vivos capazes de escutar os primeiros gemidos da cidade. À boa maneira da espécie - e sem qualquer culpa, coisa genética - tinham tratado de empilhar haveres e iniciar a Longa Marcha em direcção, bem, geograficamente falando, em qualquer direcção desde que a mesma fosse apanágio da palavra saída. Repare-se, uma família de ratazanas que vivesse no centro da cidade, para sair, tanto faria o norte ou o sul ou qualquer outro ponto cardeal e todos os intercalares, que as cidades costumam ser circulares. Mas em nome da protecção e segurança e outros valores caros a povos inteiros em marcha a passo de fuga acelerada, a Imparável Marcha acabou por se dirigir toda para uma direcção só, apanhando todos os participantes pelo caminho. Sem lógica, mas mais animado.

O ambiente que se vivia era de euforia, que o medo aprazado não é um pânico mas antes uma cautela. Ou, pelo menos, era o que o líder do grupo, uma ratazana cheia de marcas das guerras contra outros clãs e também gatos, fazia constar pelas fileiras. Tudo corria, pois, dentro do estipulado e na relativa calma que uma marcha forçada, com alguns espezinhamentos e uns quantos ratos mais coxos deixados para trás, proporciona aos mais fortes e audazes (nas ratazanas a Lei de Darwin ainda impera). E continuaria a correr, não tivesse a Marcha sido engrossada pelo Bando dos Ratífulos.

O Bando dos Ratífulos (nome inventado por eles mesmos, para se demarcarem das grandes famílias de ratazanas) era composto por algumas dezenas de ratazanas e ratos ainda na segunda idade mas já com ideias de sair de casa e ter um canto seu, com frigorífico cheio de cervejas, cinzeiros a transbordar de beatas e muito sarro no fundo do duche; e que, em horas mortas, se entretinha a colar e arrancar cartazes, assaltar lojas de conveniência e brincar com as leis da química. Seguiam algumas cartilhas de independência ou morte, braços armados de ideologias que ainda haveriam de pensar quais eram e a nós! a nós! ou coisa parecida.

Desde que se tinham juntado à Marcha, os desacatos tinham aumentado e a Marcha estava um bocado farta deles, mas serviam para assustar os gatos e cumpriam uma função utilitária na protecção dos mais fortes e audazes (e mais espertos).

Tudo corria, pois, mais ou menos agora, dentro do estipulado, até que o chefe dos Ratífulos, Ratífulo 1 (não eram muito imaginativos e o autor também não está com melhores ideias), resolveu abordar o Grande Chefe da Imparável Marcha (GCIM) e questionar o assunto das pontes. Alto e bom som.

Mas quais pontes? retorquiu GCIM, agastado com aquele atrevimento; mas depois lembrou-se que Ratífulo 1 era filho (embora em relações menos que cordiais) do Grande Chefe de uma das principais famílias e prosseguiu com melhores modos, que pontes, filho?

As pontes, então! respondeu o outro, não se distraindo com aquela bandeira espetada no nariz a acenar paternalismo causador de polémica em alturas menos urgentes. As pontes todas que temos deixado para trás!

Sim? atirou-lhe GCIM, diz depressa que estamos aqui parados; não sei se reparaste, acabamos de atravessar uma e a Marcha agora está toda virada ali para trás a ver o que se passa, que uma ponte numa cidade cujas pedras gemem não é proximidade desejável. Estás a lançar o pânico o que é ainda menos desejável e aposto que não é mais do que outra manobra do teu grupelho para se apropriar de bens alheios.

GCIM, implorou o outro e tão importante era aquela questão que deixou passar a parte da apropriação de bens alheios, credo que tinha aprendido de nascença e que agora lhe estava a ser apresentado como reprobatório. GCIM, as pontes que temos deixado para trás, temos de as queimar!

Queimar? ecoou a Marcha ao som espantado produzido por GCIM.

Claro, disse Ratífulo 1. Toda a gente sabe disto: numa Marcha Épica em fuga para a frente, há sempre que queimar as pontes. É obrigatório. Senão não é Marcha Épica e ninguém vai nunca escrever sobre nós.

Ninguém vai escrever sobre nós? produziu um coro afinado de ratazanas histéricas, antes sequer de GCIM abrir a boca. Mas isso não pode ser! prosseguiram outras e logo ali se produziu tão acesa discussão sobre a queima das pontes que ardeu num instante e o consenso foi atingido passado um curto espaço de tempo.

Ok! decidiu GCIM, queimam-se as pontes. Vamos começar por esta aqui! Alguém - e olhou para Ratífulo 1 - tem ideia de como isso se faz?

Bem...não, respondeu Ratífulo 1. Mas isso também não interessa. Temos ideologia e conceito. Temos a ponte. Depois do almoço a gente logo vê disso.

* repost mas não para encher, apenas para assegurar a continuidade, relembrando esta história

 
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